Visão estratégica para o setor de energia elétrica

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É natural que o ser humano prefira as decisões que melhor lhe tragam benefícios no curto prazo. No entanto, isso, às vezes, pode trazer altos custos ou malefícios no longo prazo. As decisões econômicas ficam dentro desse contexto. No caso da energia, os custos podem ser grandes.

No início do século passado o mundo estava tranquilo pois as reservas de carvão eram suficientes para atender as necessidades mundiais de energia elétrica por diversos séculos. Com a motorização da sociedade e a primazia do petróleo veio a confiança de que as reservas de petróleo garantiriam o consumo por diversas décadas. O surgimento do uso do gás natural em usinas de ciclo combinado ampliou essas expectativas.

Depois do uso intenso desses combustíveis fósseis, o mundo parece estar despertando para as consequências.

Nova onda de esperança surge com a expectativa de que o potencial de produção de energias solar e eólica podem resolver o problema por décadas futuras. Será? O custo dessas fontes continuará tao baixo?

A experiência passada indica que usualmente trocamos um problema atual por outro futuro. Foi assim também quando na década de 1970 o boicote de suprimento de petróleo estimulou o crescimento de grandes centrais nucleares. Posteriormente, problemas técnicos e a falta de competitividade económica, trouxeram uma paralisação na implantação de novas unidades.

E como tem sido no Brasil?

No início do século, o setor era constituído por empresas privadas ou municipalidades atendendo o mercado local (1899 criada a São Paulo Tramway, Light and Power e 1904 a Rio de Janeiro Tramway, Light and Power). Apenas três décadas depois veio a primeira regulação (1934 Código de Águas, decreto 24643) e somente em 1957 foi editada a regulamentação do Código de Águas referente à energia elétrica (decreto 41.019 de 26/02/1957).

Por falta de uma estrutura formal e mesmo até por falta de regulação, as instalações seguiam as decisões das empresas encarregadas da prestação dos serviços. Isso resultava em um baixíssimo atendimento às áreas mais distantes e a um atendimento de qualidade discutível. A partir da década de 1940 o governo federal iniciou investimentos no setor, primeiro com a criação da CHESF (1948) e posteriormente FURNAS (1957) e a própria ELETROBRAS (1954).  Os estados também criaram empresas seguindo o exemplo da criação da CEMIG (1952).

Embora o decreto 41019 (de 1957) tenha estabelecido a regulação e o governo tenha criado o Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica (1939) e, posteriormente, o Departamento Nacional de Energia Elétrica (DNAEE – 1965) não se percebia uma organização estrutural no setor. A tal ponto que para a conexão do sistema de FURNAS ao Rio de Janeiro, na década de 1960, o país foi obrigado a um esforço grandioso de troca de frequência pois os mercados no Brasil, além de diferentes níveis de tensão (110 ou 220Volts) tinham também diferentes frequências; com boa parte do país em 50 Hz e o restante em 60Hz.

Com a criação da ELETROBRÁS o governo utilizando-se de um financiamento do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) criou um grupo com apoio de consultores Canadenses e engenheiros brasileiros que produziu o chamado relatório CANAMBRA que foi a primeira experiência de planejamento organizado do setor elétrico, embora limitado à região sudeste do país. Seguiram-se iguais estudos para a região Sul e Nordeste e depois a criação do ENERAM para a região amazônica.

O crescimento dos sistemas levou à interligação das diferentes empresas e com isso a necessidade de coordenação operativa que resultou em um acordo entre as empresas criando o Comitê Coordenador da Operação Interligada (CCOI) que em 1973 (pela lei 5.899) tornou-se um organicismo com base legal mudando nomenclatura para Grupo Coordenador da Operação Interligada (GCOI) e passando a ser coordenado pela Eletrobras. Na mesma oportunidade, e também coordenado pela Eletrobras, criou-se o Grupo Coordenador do Planejamento do Sistema (GCPS). Esses organismos incluíam colaboração das empresas para coordenar de forma técnica e estruturada o planejamento e a operação dos sistemas.

As ações coordenadas desses organismos garantiram a existência de capacidade de potência e reserva de energia no sistema em caráter multianual para o atendimento do mercado.

As reformas do final da década de 1990 e início de 2000 modificaram completamente a estrutura organizacional do sistema.

A operação continuou coordenada pela criação do Operador Nacional do Sistema (ONS), porém o planejamento, que ficou sob a responsabilidade da criada Empresa de Planejamento Energético (EPE), passou a ser apenas indicativo.  Dessa forma as oportunidades de investimento em geração podem ou não resultar em concretização. Com isso, as instalações passaram a serem feitas seguindo o menor investimento ou maior atratividade para o investidor e não se priorizando a confiabilidade. O volume de plantas intermitentes (solar fotovoltaica e eólica) localizadas nas regiões mais adequadas para seus investidores, mas nem sempre próximas ao mercado, tornaram-se realidade. Isto levou a ter-se fortes investimentos em transmissão e redução da confiabilidade do sistema pela intermitência das fontes e por falta de reservas e de fontes despacháveis.

Voltamos à situação antiga de atuar sem planejamento. A falta de reservas e de fontes despacháveis demonstram a necessidade de um planejamento integrado e adequado que indique a prioridade dos investimentos de forma determinativa, independente da natureza do investidor (público ou privado) e do tipo de fonte (a ser definida pelo planejamento).

Nesse contexto, o Brasil não deve abandonar fontes de energia confiáveis e para as quais dispomos de reservas adequadas. Refiro-me às hidrelétricas e à nuclear.

No campo de hidrelétricas o Anuário Estatístico de Energia Elétrica 2022 (da EPE) indica capacidade instalada de 103 GW. O mapa SIPOT do site da Eletrobras referente ao ano de 2018 indica que o Brasil tem um Potencial Hidrelétrico de 246 GW, sendo apenas 44% em operação e meros 6% com estudos de viabilidade executados.

As usinas hidrelétricas são recursos flexíveis, capazes de prover uma série de serviços ancilares, como o controle automático de geração, controle de tensão e de frequência, e, as que possuem reservatório, permitem armazenar energia. O Brasil possui vasta experiência nos trabalhos de engenharia para inventários, viabilidade, projeto básico, projeto executivo, construção e operação dessas usinas. Esse potencial deve ser utilizado. Adicionalmente, neste mesmo campo, temos potencial para instalação de usinas reversíveis.

O sistema elétrico brasileiro está evoluindo com forte participação de fontes renováveis, em especial solar fotovoltaica e eólica. Entretanto, poderemos otimizar o uso das hidrelétricas nesse contexto. Devido a intermitência dessas novas fontes e a grande capacidade de hidroelétricas já instaladas no Brasil, bem como a possibilidade de novas instalações hídricas, surgem oportunidades e novos desafios para a geração de energia hidrelétrica incluindo Usinas Hidrelétricas Reversíveis (UHR). Para isso, o projeto específico e atributos operacionais das hidrelétricas necessitam ser bem compreendidos e aperfeiçoados para serem melhor utilizados no novo sistema de energia.

No campo nuclear, o Brasil possui recursos significativos de urânio, o que leva o país a ocupar posição de destaque no ranking mundial. Os recursos conhecidos são da ordem de 244.788 toneladas de urânio contido (U3O8), distribuídas entre os estados da Bahia, do Ceará e outros. Estima-se que os recursos sejam ainda maiores, já que menos de um terço do território brasileiro foi alvo de pesquisas minerais. A região Norte do país tem potencial para abrigar mais de 300 mil toneladas de urânio. Já foram identificadas potenciais áreas no Pará e em Pitinga (Amazonas), onde o urânio encontra-se associado a outros minerais.

Os países com maior potencial de recursos de urânio são: Austrália, Cazaquistão, Canadá, Rússia, Namíbia, África do Sul, Brasil, Niger e China (fonte: World Nuclear Association).

O Brasil possui a Fábrica de Combustível Nuclear (FCN), um conjunto de unidades industriais dedicadas ao processamento de quatro etapas do ciclo do combustível nuclear: o enriquecimento isotópico de urânio, a reconversão, a produção de pastilhas e a montagem do combustível que abastece os reatores das usinas nucleares.

Atualmente estão em operação as usinas Angra 1 (início de operação em 1985), com capacidade para geração de 640 megawatts, e Angra 2 (início de operação em 2001), de 1350 megawatts. E, em construção, Angra 3, que será praticamente uma réplica de Angra 2, que está prevista gerar 1405 megawatts. As nossas usinas operam com reator de água pressurizada (PWR).

Apesar de o programa nuclear ter sido motivo de grandes discussões tanto técnicas, ambientais, como sobre sua transparência, é inegável que o Brasil dispõe de um bom potencial de fonte de energia sem emissões. Apenas para referência, a capacidade de produção de energia elétrica pela fissão de um quilo de U235 equivale a queima de 2.000 toneladas de óleo ou 2.500 toneladas de carvão. Porém, existe um marasmo e não temos notícias de ações sobre desenvolvimento de novos tipos de reatores similares às notícias vindas de outras partes do mundo.

A última noticia publicada foi que em junho de 2022, de que a Eletronuclear e a EDF assinaram um novo Memorando de Entendimento (MoU) válido por cinco anos promovendo a cooperação mútua no desenvolvimento de projetos de energia nuclear. Porem a informação contida no informativo de imprensa destaca que a “parceria será realizada em áreas como operação e manutenção de usinas nucleares, gerenciamento de materiais antigos, segurança da informação e aceitação publica da energia nuclear”, portanto, sem relacionar novas modalidades de reatores, como o projeto Nuward (referido mais adiante neste artigo).

Fora do Brasil as notícias quanto a esses novos desenvolvimentos ressaltam que tanto nos EUA como na Europa, Rússia e China, avanços estão sendo alcançados em vários campos para novas instalações de geração de eletricidade por energia nuclear.

Assim, nos EUA o Departamento de Energia está financiando o desenvolvimento de vários tipos de “micro-reatores” e de “pequenos reatores modulares” (chamados Small Modular Reactors – SMRs), bem como desenvolvimento de uma variedade de projetos avançados de reatores, incluindo conceitos de resfriamento por gás, metal líquido e sal fundido em tubulação.

Alguns projetos de micro-reatores já estão sendo comercializados e advogam as seguintes vantagens:

  1.   Produzidos em fábrica: Todos os componentes de um micro-reator seriam totalmente produzidos e montados em fábrica e enviados para o local de instalação. Isso elimina as dificuldades associadas à construção em grande escala, reduz os custos de capital e agiliza a entrada em funcionamento.
  2.   Transportável: as unidades menores tornarão os micro-reatores de fácil transporte. Isso permitiria ao fornecedor enviar o reator completo por meio de carreta rodoviária, navio ou até avião.
  3.   Auto-ajustavel: Conceitos de projetos simples e específicos permitirão que os micro-reatores se auto-ajustem. Eles não exigirão um grande número de operadores especializados e utilizam sistemas de segurança passiva que evitam qualquer potencial de superaquecimento ou derretimento do reator.

O fabricante Westinghouse já anuncia um reator [e-Vinci] que produz 5 MW elétricos/13 MW térmicos.

No campo de SMRs existem vários projetos em desenvolvimento sendo que o Departamento de Energia dos EUA fez parceria com a NuScale Power e a Utah Associated Municipal Power Systems (UAMPS) para demonstrar uma tecnologia de reator inédita no Laboratório Nacional de Idaho nesta década. Esse projeto consiste em um reator de água leve (LWR), oferecido em módulos de 77 MWe com um cilindro de 24 metros de comprimento por 4,6 metros de diâmetro dividido em três partes para transporte, utilizando combustível com 5% enriquecimento em varas de 2 metros, fornecido com o combustível de duração por 2 anos.

Um projeto denominado Carbon Free Power Project (CFPP) será construído no Laboratório Nacional de Idaho do Departamento de Energia dos EUA, perto de Idaho Falls, e usará seis dos módulos de 77 MWe da NuScale para gerar 462 MWe de eletricidade. A usina está programada para iniciar operação em 2029, e o estado de Utah, está trabalhando para enviar o pedido de licença de construção e operação à Comissão Reguladora Nuclear dos EUA em janeiro de 2024

Os SMRs advogam as seguintes vantagens:

Modularidade: O termo “modular” no contexto dos SMRs refere-se à capacidade de fabricar os principais componentes do sistema de fornecimento nuclear em um ambiente de fábrica e enviar para o ponto de uso. Os SMRs são projetados para exigir uma preparação limitada no local e reduzir substancialmente os longos tempos de construção típicos das unidades maiores. Os SMRs fornecem simplicidade de projeto, recursos de segurança aprimorados, economia e qualidade proporcionadas pela produção de fábrica e mais flexibilidade (financiamento, localização, dimensionamento e aplicações de uso final) em comparação com usinas nucleares maiores. Módulos adicionais podem ser adicionados de forma incremental à medida que ocorrer aumento da demanda.

Menor Capital Investido: SMRs podem reduzir o investimento de capital do proprietário de uma usina nuclear devido ao menor custo de capital da usina. Componentes modulares e produção em fábrica reduzem os custos e o período de construção.

Maior Facilidade de Localização:  SMRs podem fornecer energia para locais onde grandes usinas não são necessárias ou onde os locais carecem de infraestrutura para suportar uma grande unidade. Isso incluiria mercados elétricos menores, áreas isoladas e locais com limitação de água e de terrenos.

Maior Integração: SMRs podem ser combinados com outras fontes de energia, incluindo energia renovável e fóssil, para alavancar recursos, obter maior eficiência e vários produtos finais de energia, aumentando a estabilidade e a segurança da rede. Alguns projetos SMR avançados podem produzir calor de processo com temperatura mais alta para aplicações industriais;

 

Segurança: Os projetos SMR têm a vantagem distinta de levar em consideração as proteções e os requisitos de segurança atuais. Os sistemas de proteção de instalações, incluindo barreiras que podem resistir a queda de aeronaves e outras ameaças específicas, fazem parte do processo de engenharia que está sendo aplicado ao novo projeto SMR. Alguns SMRs serão projetados para operar por longos períodos sem reabastecimento, alguns até 10 anos. Esses SMRs podem ser fabricados e abastecidos em fábrica, selados e transportados para locais de geração de energia ou calor de processo e, em seguida, devolvidos à fábrica para reabastecimento no final do ciclo do combustível.

 

Na Europa, a EDF assinou uma Carta de Intenções com Ansaldo Energia, Ansaldo Nucleare e Edison para avaliar a potencial cooperação industrial para o desenvolvimento na Europa, inclusive na Itália, especificamente no campo de pequenos reatores modulares (SMRs).

 

“A EDF tem a ambição de promover parcerias internacionais para implantar um portfólio de tecnologia nuclear para apoiar a Europa em suas metas de emissão zero”, disse Vakis Ramany, vice-presidente sênior da EDF, responsável pelo novo desenvolvimento nuclear internacional.

 

O projeto Nuward foi lançado em setembro de 2019 pela Comissão Francesa de Energias Alternativas e Energia Atômica (CEA), EDF, Naval Group e TechnicAtome. O Nuward – composto por uma usina SMR de 340 MWe com dois reatores de água pressurizada (PWRs) de (170MWe cada) alojados em um único prédio nuclear, otimizando o uso de equipamentos mutualizados e foi desenvolvido usando a experiência da França em PWRs. Infelizmente, não vimos no informe de noticia sobre o MoU assinado em junho de 2022 com a Eletronuclear referencia e esse tipo de reator.

 

Assim, uma possível estratégia seria criar um estoque de inventários hidrelétricos com os estudos de viabilidade correspondentes; fazer o mesmo para usinas reversíveis; promover estudos e cooperações internacionais relativo a novas tecnologias, inclusive nuclear; promover pesquisas relativas à reserva de energia, inclusive quanto a forma de remunerá-las. Com base nesses novos conhecimentos e daqueles já existentes e futuros dos potenciais de fontes renováveis intermitentes, promover estudos de planejamento integrado de geração e transmissão gerando alternativas com ranking de preferência das usinas a serem licitadas naquela ordem.

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